domingo, 29 de agosto de 2010

domingo, 29 de agosto de 2010




O CARA DO OUTRO LADO DA RUA

Ele sabia onde ela morava, a via freqüentemente saindo com o carro pela garagem, já havia até decorado a placa da atriz. O que ele não sabia é que ela, da janela
do seu apartamento, reparava nele todo dia também, quando ele chegava no escritório em frente. Um moreno alto, não muito diferente de qualquer outro moreno alto.
Ele acompanhava a novela das oito que ela fazia, gostava do jeito que ela atuava, havia uma certa dignidade na escolha dos papéis, e imaginava que ela tinha diversos
namorados.
Ela, por sua vez, nada sabia dele, a não ser que era um homem como outro qualquer.
Um dia se cruzaram, ela saindo do prédio, ele chegando ao escritório, e por razão nenhuma se cumprimentaram. Duas vogais: oi.
Passaram semanas e um dia se abanaram, de longe. E longe permaneceram por outros tantos meses. A atriz famosa do prédio em frente. O cara do escritório do outro
lado da rua. Era isso que eram um para o outro.
Não se sabe quem tomou a iniciativa, se foi ela que sorriu de um jeito mais insinuante ou se ele que acordou de manhã com o ímpeto de sair da rotina, apenas se
sabe que um dia pararam na calçada para ir além das duas vogais, e ele teve a audácia de convidá-la para um café, e ela teve o desplante de aceitar.
Durante o café, ele soube que ela havia se separado recentemente, e ela soube que ele
estava tentando arranjar coragem para encerrar uma relação desgastada. Ela tomou uma água mineral sem gás, ele, dois expressos, e ficaram de se falar.

No dia seguinte ele telefonou e comentou que ela havia dado a ele a coragem que faltava. O recado foi entendido, e ela aceitou prontamente um convite para jantar,
e desde então não pararam mais de se tocar e de se conhecer. Ela contou, entre lençóis, que trabalhar na tevê é uma profissão como as outras, que o estrelato é uma
percepção do público e que no fundo ela era uma mulher quase banal. Ele contou, durante uma viagem que fizeram juntos, da relação que tinha com os avós, da importância deles na sua infância e em como seu passado de garoto do interior havia definido seu caráter. Ela contou, enquanto cozinhavam um macarrão, que havia sido uma menina bem gordinha e que implicavam muito com ela na escola. Ele contou, enquanto procurava uma música no rádio, que havia morado em Lisboa e que seu sonho era ser pai. Ela contou, enquanto penteava o cabelo dele, que às vezes chorava mais de felicidade do que de tristeza e que ainda não sabia o que dar a ele de aniversário. Ele contou, num dia em que assistiam a um filme no DVD, que ela ia rir mas era verdade: quando garoto, ele chegou a pensar em ser padre. Ela contou, enquanto retocava o esmalte, que já havia se atrevido a escrever poemas, mas eram horríveis. Ele pediu para ler. Um dia ela mostrou. Eram horríveis mesmo. Ele mostrou os versos dele.

Não é que o safado escrevia bem?
Não chegaram a viver juntos como vivem todos os casais, mas também nunca mais ficaram
separados por uma janela, por uma rua, por um silêncio interrogativo, por uma possibilidade remota. Havia acontecido. Ela para ele, nunca mais uma celebridade. Ele para ela, nunca mais um homem comum.

1 comentários:

Mariana disse...

Esse texto realmente é lindo! Ta de parabens na escolha!!
bjooos

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Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las.

 
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